Dizem que é amor
Faz tanto frio que nem os vidros
refletem mais. Guardam para si o calor sintético produzido por essas novas
tecnologias, estufas, ares-condicionados e fogões digitais. A mãe, esquenta a
água pro chimarrão logo cedo, dentre os primeiros raios da manhã. Sacode a
poeira, abre as janelas, faz o velho se vestir de novo. O pai, ciente do frio
que tem feito, coloca uns pinhões pra cozinhar aguardando a chegada da única
filha. A geada já toma conta da cabeça dos dois. Tantas tempestividades que
esta mera escritora não conseguiria exprimir nestes versos. Junho chegara e com
ele a esperança de boas novas, a vontade de seguir em frente após todo o
ocorrido. A primogênita chega de mais um dia, sorvida de cansaço, olhos
estalados de preocupação com os velhos que não andam mais saltitando dentre
viagens e planos. Aliás, nada permanece como era antes. Agora muitas memórias
são retratos na parede do quarto da pequena sonhadora, que não se conforma em
ver um mundo tão desumano como esse. Ela fecha os olhos, e dentro de sua oração
pede a fé necessária para seguir acreditando que onde quer que vá, levará
resquícios daquela casa onde aprendeu o que era amor, sentada em seu trono de
ouro, todos os dias. Aqueles dois, que implicavam tanto, brigavam tanto achando
que ela desperdiçaria as chances que a vida traria, caso continuasse tão no
mundo da lua como era. Agora velhas músicas tocam no rádio do carro, e ela
continua viajando ao encontro de boas lembranças daquela vida que não a
pertence mais, se perguntando se seus filhos, tão esperados, a amarão tanto
como ela ama aqueles dois gordinhos que, com muito carinho e paciência, lhe
proporcionaram ser quem ela é hoje. O marido bota lenha na lareira enquanto a
espera com o coração nas mãos, afoito por uma resposta que mudaria o rumo de
sua melancolia dos trinta e poucos anos. A casa não é das maiores, nem
comparada com aquela que ela sonhou para si quando se abrigava do mundo com seu
violão em seu quarto. Mas é aconchegante, pode pendurar seus sonhos e quadros
pelas paredes. As cores verdes da cozinha renderam horas de discussão casual,
afinal, quem hoje em dia tem uma cozinha com tons de verde? Ela tinha, 20 anos
atrás. Os gatos entrelaçados no sofá da sala faziam parte da decoração
pós-moderna que ela planejara (aliás, fingia entender muito bem da tal da
moda). O chimarrão já pronto era adornado pela mão inquieta daquele menino que
se tornara homem cedo, e agora homem está se tornando um velho rabugento. O
barulho das chaves anunciava a chegada da pequena mulher. Gatos nos ares,
chimarrão no sofá, tapete na lareira e o velho Cazuza estridente na sala
consagravam a ansiedade dos habitantes daquela casa: Positivo.
Um sorriso brinda o início de uma
nova vida. Confetes enfeitavam as cabeças dos convidados e as felicitações deixavam-na
atônita com o futuro incerto que os esperava, mas afinal, aprendera a lutar
desde cedo com os dois guerreiros que tinha dentro de casa. Mensagens chegavam
de todas as formas, até sinal de fumaça aqueles bons e velhos amigos
loucos-varridos fizeram. Passadas as festividades, ela abraça seu fiel
companheiro, fecha seus olhos e agradece, agradece a um ser que não se sabe de
onde vem, crê com uma fé que não se sabe como surgiu, pede com uma força que
surgira ao ver-se no espelho sendo o que sempre quis ser. Sabia ela agora o
quão grande era, o quão grande sempre foi. Refletida nos vidros de seu antigo
reino, escrevia uma nova história com seu rei ao lado. Sempre esperou por esse
momento. Vestira seu melhor sorriso, aquele que ela encontrava nas prainhas de
arroio do sal em meados de 2000, quando o pai lhe lançava de encontro às ondas,
e a mãe desesperada gritava na areia. Eles a estavam esperando, esperavam-na
desde que sua menininha voara para alcançar novos horizontes. Em seu reino
permaneciam os velhos abraços, os velhos sorrisos, seus velhos com a velha
alegria que a menina -agora mulher- necessitava encontrar para selar a
imensidão que seu amor se tornara. Amos que só se tornou completo depois das
lágrimas de felicidade dos babões. Agora ela entendera o verdadeiro sentido de
ser feliz: Trazer no ventre a possibilidade de amar por inteiro - o amor de
mãe.
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