da mácula necessária do amor
(...)
- Me diz.
- Hein?
- A merda, o cheiro, o nojo. E o amor, o amor, cara. O que eu faço com isso?
- Você esquece, sei lá. Não tem tanta importância assim. E se for mais forte?
- A merda?
- Claro que não. O amor.
- Amor não existe. É uma invenção capitalista.
- Isso é só uma frase.
- Eu não sei, pode ser.
- Mas se. Tudo bem. Suponhamos que os dois caras gostem muito um do outro.
- O que já é difícil.
- Pode ser, mas... suponhamos. Eu já vivi isso. E se realmente gostarem? Se o toque do outro de repente for bom? Bom, a palavra é essa. Se o outro for bom para você. Se te der vontade de viver. Se o cheiro do suor do outro também for bom. Se todos os cheiros do corpo do outro forem bons. O pé, no fim do dia. A boca, de manhã cedo. Bons, normais, comuns. Coisa de gente. Cheiros íntimos, secretos. Ninguém mais saberia deles se não enfiasse o nariz lá dentro, a língua lá dentro, bem dentro, no fundo das carnes, no meio dos cheiros. E se tudo isso que você acha nojento for exatamente o que chamam de amor? Quando você chega no mais íntimo, No tão íntimo, mas tão íntimo que de repente a palavra nojo não tem mais sentido. Você também tem cheiros. As pessoas têm cheiros, é natural. Os animais cheiram uns aos outros. No rabo. O que é que você queria? Rendas brancas imaculadas? Será que amor não começa quando nojo, higiene ou qualquer outra dessas palavrinhas, desculpe, você vai rir, qualquer uma dessas palavrinhas burguesas e cristãs não tiver mais nenhum sentido? Se tudo isso, se tocar no outro, se não só tolerar e aceitar a merda do outro, mas não dar importância a ela ou até gostar, porque de repente você até pode gostar, sem que isso seja necessariamente uma perversão, se tudo isso for o que chamam de amor. Amor no sentido de intimidade, de conhecimento muito, muito fundo. Da pobreza e também da nobreza do corpo do outro. Do teu próprio corpo que é igual, talvez tragicamente igual. O amor só acontece quando uma pessoa aceita que também é bicho. Se amor for a coragem de ser bicho. Se amor for a coragem da própria merda. E depois, um instante mais tarde, isso nem sequer será coragem nenhuma, porque deixou de ter importância. O que vale é ter conhecido o corpo de outra pessoa tão intimamente como você só conhece o seu próprio corpo. Porque então você se ama também. (...) Ia dizer qualquer outra coisa. Mas de repente estendeu os braços sobre a mesa e segurou nos ombros de Santiago. Apertou forte. O bafo morno dos restos de pizza flutuando no óleo, cinzeiro cheio, copos vazios, pratos amontoados entre os dois, pedaços de lingüiça, caroços de azeitona, queijo derretido, lascas engorduradas de presunto. Santiago quase não entendeu o que ele disse, palavras brotando confusas de entre os dentes que apertavam o cigarro.
- Sabe que eu gosto de você? Eu gosto muito de você, garoto.
Um bicho arisco, Santiago lembrou. Você precisa estender a mão com cuidado senão ele foge, era isso? Entre os brilhos falsos, insinuado, um pedaço de estopa. Porque eu também sinto medo, e haverá a morte um dia. A vida é apenas uma ponte entre dois nadas e tenho pressa.
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