Pé sem dedão

Não sei ao certo o que despertou a vontade de lhe escrever. O fato é que, desde de houve o grande entrave, que acarretou a nossa separação, o que mais faz falta, penso, é chegar em casa e ter a quem narrar as curiosidades mundanas de meu dia. Sofro de ausência. Sinto falta do seu entusiamo ao meu ouvir. A ansiedade em seus olhos, fixos em direção aos meus. Seu riso inciso e alegre fazendo das minhas histórias piadas engraçadíssimas, as quais segundos depois você magicamente deletava da memória recente. Fazia toda a saudade virar poesia, amor. Como a minha gata se enrolava aos meus pés, você me enrolava no seu abraço sufocante, quando acordávamos pela manhã -as poucas que acordamos juntos. Logo depois voltava a dormir, ciente de que, em sonho, te buscaria incessantemente durante seus breves segundos de ausência. Seus olhos azuis que, perturbados pela luz da manhã, escondiam-se no meu peito. Meu peito que era sua moradia. Sua boca sussurrando bom dia ao pé do meu ouvido, fazendo os minutos se arrastarem até que você estivesse suficientemente preparada para sentir algo além de sono. Para me sentir. Me beijava suavemente, trazendo da imersão de ser quem eu sou. Calada, você me chamava pro mundo: Me fez não ter mais medo da eternidade. Seu beijo, nosso beijo, guardo nos bolsos menores de minha bolsa. Guardo nos bolsos das saudades bonitas (se é que saudade não nos suscita a vontade de corrermos para fora de nós mesmos, e isso de bonito não tem nada). Sua mão seguia o contorno da minha cintura, e em instante me amarrava rente ao seu corpo. Meu templo que foi seu corpo. Marcas que o tempo cauteriza dentro de meu peito escasso. Ah meu bem, já não vejo minhas manhãs da mesma forma. Cambaleando dentre vielas da solidão,tropeço na incerteza de continuar sem uma parte tão importante de minha história. De continuar sem minha história. Como um pé sem dedão, sigo, manca, reescrevendo as linhas, recomeçando textos a partir do teu "E se..."

Velha demais pra ser jovem. Jovem demais para ser velha.