eu te reconheceria






As janelas estavam abertas, mediante o insuportável calor que fazia na cidadela de Roofeold. As ruas estreitas outrora cobertas pela neve de -15º, agora abrigavam a claridade de um sol quase equatoriano. Nós havíamos combinado de viajar para a Escócia, anos antes, afim de comprarmos nosso bichano. Mas, a sorte não nos assistiu na jornada e você, tão madura, deixou de rir das minhas piadas sem graça, vez que até mesmo começou a implicar com o meu jeito certo e chato de falar. A minha culinária experimental, já calejada a esta altura do campeonato, não mais satisfazia suas vontades, e passamos a comer em restaurantes quase diariamente. Certa vez, você me falou que havia esgotado todas as chances de achar felicidade em mim, de tanto que eu cavo, fundo, nesse poço de emoções sem fim que eu sou. Acho que ali foi a nossa gota, já que eu sempre acreditei ser a tua felicidade e tenho por ideologia que a felicidade é, e não está. Você voltou naquela semana para a casa dos seus pais, com aqueles velhos hábitos chatos que você tanto me reclamava, mas acabou ficando igualzinha à sua mãe quando ninava o cachorro de vocês no colo. Eu fiquei aqui no apartamento que a gente sempre quis, com essa varanda gigante onde transamos tantas vezes sem os vizinhos perceberem. Aliás, nosso sexo nunca murchou como imaginávamos que aconteceria. Acho que é essa intimidade que a gente tem, não de tirar a roupa, mas de se olhar por dentro, se buscando dentro da outra. Isso a gente nunca perdeu. Onde foi que a gente se perdeu? Era a profissão que eu sempre quis, que você sempre quis, num apê pertinho daquela loja natureba que você gostava, com um parque tão bacana que a gente caminhava de manhã, vendo aquelas malditas pombas que insistiam em te assustar saindo de trás daqueles bancos  e eu gargalhava como se não houvesse amanhã, até você fechar a cara de dizer que queria ir para casa, mas, tudo bem, eu sei que você nunca gostou de caminhar de manhã. Nosso cachorro acabou ficando contigo, o que não me exime de espiar ele vez em quando, lá da janela do teu tio. Inclusive, ele vem me inteirar das suas novidades quase que diariamente, e eu, aos choramingos, encaro de frente o vazio que ficou nesse lugar que a gente sempre quis. Sabe, já tivemos brigas tão piores que acabaram tão melhores. Eu fiz tantas coisas babacas nesses anos, e agora que eu tenho a idade que tu tinha quando me conheceu, sinto o medo que você sentia e não me falava. Eu era tão inconstante! Lembra da mudança, quando eu passei naquele primeiro concurso? Praticamente te arrastei pra morar comigo e não entendia porquê você já não estava de prontidão na porta, com as malas e todo o resto pra fugir comigo. No fim, fomos pra Mostardas, que era uma cidade de merda comparada com onde estávamos. Hoje eu entendo o choque que foi para você me criar. Sim, você praticamente me criou e eu criei você. A gente nunca tinha saído dessa zona de conforto colorida da casa dos pais, e de repente, eu te pedi para viver uma vida comigo, em uma cidade que a gente nem conhecia, completamente morto, ermo. Você largou tudo: o agito dos amigos sempre por perto, as noites no pub, os violões no lago, o seu emprego chato, mas engraçado... eu nunca te agradeci por isso. Ainda bem que aquele limbo ficava a quarenta minutos de carro da tua avó, e com o passar do tempo, eu precisava te buscar todo dia lá porque aquele cinza todo te fazia mal e você só sorria longe dali. Não sei como você aguentou um ano todo ali, só por minha causa. Você era uma injeção de vida a cada novo problema no trabalho, e, repito, nunca te agradeci por ter sido tão paciente. A segunda mudança foi a mais louca de todas, porque você enfim entrou naquele tribunal e estava assoberbada de sensações novas. Eu fiquei tão orgulhosa, amor! Eu que havia jurado nunca morar naquela sujeira toda, me vi feliz ao pela janela te ver chegar, com um sorriso de orelha à orelha. Um dia jantávamos na tua tia, no outro na tua prima. No fim de semana subíamos a serra, e vínhamos visitar nossos pais. Minha mãe, anos antes, havia dito para eu seguir, enfim, meu coração, mas quis distância de todo o meu caos. A cada visita, ela se acostumava mais com a ideia de que logo alguém a chamaria de avó. A essa altura você já tinha me ligado para contar de qualquer besteira que nosso cachorro tinha aprontado, e juntas ríamos ao telefone, enquanto minha mãe me observava e perguntava, logo após eu desligar, como minha amiga estava. Sabe, amor, ela gostava de você. Lembro como se fosse hoje, da primeira vez que ela deixou escapar que tinha adorado um feijão que você levou para ela, e que no fim, nem tinha sido você. Sabe, logo depois que você foi embora, a primeira coisa que eu fiz foi ir tomar um café. Você nunca gostou, então, pensei que não encontraria nenhum resquício seu na padaria da esquina, onde eu costumava vir buscar nosso café e a moça do caixa sempre perguntava se eu queria mais açúcar no seu Vanilla. A moça do caixa casou, sabia? Com outra moça, como você desconfiava. Nunca desconfiei dela, mas você sempre teve ciúmes e me mandava para a fila do pão enquanto pegava os cafés. Na hora de pagar, sempre pegava na minha cintura e me puxava para perto. Eu te sentia dentro de mim quando você me olhava daquele jeito. Acho até, que já era tua, antes de sermos nós. Agora sentei para observar aquele morro que passava na TV e sempre comentávamos que no ano seguinte viríamos para escalar. O vento aqui é reconfortante. Jamais imaginei que vento teria cheiro, mas esse tem o seu. Depois de horas de caminhada, por uns casebres desses de filmes de hollywood, encontrei a casa onde eles disseram que haviam filhotes e instantaneamente um em especial me olhou tão curioso quanto você me olhou a primeira vez que nos vimos naquele lago. Eu soube que o Celta me acharia, assim como você me achou. Ao pegar o avião para voltar para casa, ele se aninhou em meu colo e não tive coragem de deixá-lo lá atrás com as bagagens. Passei por grávida, amor. Acredita? Essa minha inconsequência sempre te preocupou, mas no fim você ria e me abraçava e repetia infinitas e infinitas vezes para que eu não tornasse a pegar a estrada tão tarde ou não brigasse com meus pais e que tivesse paciência, menina! E eu, boba de pedra, continuava a fazer as mesmas coisas, só para ver a sua testa franzida de preocupação comigo. Quando o Celta chegou, pulou do meu colo e tive que o procurar por todo o aeroporto. Tão brincalhão quanto a mãe dele. Você sabe que vai ser sempre a outra mãe, não é? No fim, ele tinha entrado em uma farmácia e estava no colo de uma moça linda, que me olhou como se já me conhecesse. Conversamos por uns instantes, mas os olhos dela não eram os seus, tampouco os assuntos desenvolveram como desenvolviam com você. Qualquer porcaria que começávamos a comentar virava uma história mirabolante, como naquelas tardes em que passávamos deitadas na cama, quando você ainda estava na casa dos seus pais e não podíamos fazer muito barulho senão eles escutariam. Ainda bem que não tínhamos esse problema no nosso apartamento e podíamos conversar e transar por horas que ninguém abriria a porta pedindo pra gente tirar o carro ou bateria na parede para maneirarmos. Sabe que, subindo essas escadas eu lembro do quanto você insistiu para que fizéssemos academia no mesmo horário, mas eu, sempre implicante, queria fazer à noite e acabava nunca indo por causa daquela série maravilhosa que eu amava assistir deitada no seu colo. Pelo corredor, lembro das incontáveis vezes que algum vizinho nos pegou enquanto nos beijávamos pelas paredes e você, louca, ia tirando a minha roupa sem perceber que haviam olhos por sobre nós. Se eu tivesse que enumerar as milhares de coisas que eu gosto em ti, certamente começaria por essa coisa de você não se preocupar com mais nada quando estamos nós, e acho que não existe palavra que exprima isso. Você simplesmente deixa o mundo cair, enquanto me beija calmamente, como se nada mais existisse além do agora. Eu certamente colocaria o meu mundo abaixo por um beijo daqueles de novo. Faz tanto tempo que não nos olhamos. Essa viagem acabou sendo mais longa do que eu esperava e a essa altura você já deve estar voltando do trabalho, tirando os sapatos e falando da minha imaturidade por não te procurar, para sua mãe, afinal, a vida não para e seis meses só são grande coisa quando estamos começando. Para um fim, não são nada. Eu, como sempre, não faço ideia de onde pus as chaves e enquanto procuro agachada no corredor, observo o Celta correndo em direção à uma moça no corredor. Só assim pude perceber que havia esquecido meu óculos no descanso da cadeira do avião, mas, eu te reconheceria mesmo vendada. Ele te escolheu, assim como eu te escolhi. Eu casaria com teu sorriso, se já não fosse casada. 

- Esse é o Celta, amor, nosso gato.
- Senti saudades.

Comentários

Postagens mais visitadas