vinte e oito vinte e uns fazendo camilices





Hoje foi um dia incomum. Acordei mais tarde que o normal, fui dormir mais cedo do que o cotidiano. As férias recém começaram e eu já assisti toda a minha lista de filmes e séries programadas para o mês todo. Sabe, desacostumei a ter tempo. Parece que ficamos escravos dessa imensidão de falta de tempo e espaço para as pequenices do cotidiano. O café, logo após o almoço. A pipoca doce naquele filme de fim de tarde. O carinho no  cachorro, a soneca de quinze minutos no meio da tarde e eu, como uma controladora-compulsiva do tempo, acabo planejando mil opções de entretenimento anti-tédio. Mas, confesso: dessa vez, na minha lista-de-vontades-inter-férias  só tem você. Talvez porque dessa vez não haja essa possibilidade, eu nem me dei ao trabalho de traçar roteiros. Fiz um almoço bem simples, esquentando a comida que já havia feito ontem. Bati umas frutas, fiz um suco. Até um bolo eu comecei a fazer, mas faltou farinha. Deitei de novo. Andei pra lá e pra cá pensando no que faria de diferente, onde iria, o que comeria, o que descobriria. Mas, sabe, na minha mente só tem você mesmo.  Lavei a louça já no meio da tarde e, como você já sabe, tirei todos os anéis, o relógio, as pulseiras. Tirei a aliança. Enquanto lavava os pratos eu olhava, de rabo de olho, pro pequeno reflexo que se formou no interior dela. O sol era ricocheteado por uma espécie de onda (acho que própria do formato arredondado mesmo) e fazia uma bolinha, pequena, de luz na parede. Lembrei que a essa hora você deveria estar dormindo, porque a semana tinha sido puxada -já que você não teve férias- e não mandei a mensagem que havia pensado. Às vezes sou piegas demais, eu sei. Já deixei de mandar tanta coisa por ser clichê-pseudo-romântico que perdi as contas. Apesar de toda a nossa conversa sobre tudo partir do fundo do coração e tampouco importar se já é clichê ou não, eu ainda tento evitar esses melodramas que tanto te incomodam. O que posso fazer se pensando em você eu me torno uma apaixonada dos anos sessenta, levando flores na sua janela enquanto seus pais dormem? Me dá até vontade de fugir daqui, sabe? Larguei os copos e peguei a aliança na mão. "simplicity". Que aperto bom. Recordo que preferi escrever "simplicity" na minha e "sacred" na tua porque teu dedo era menor, e achei que não caberia uma palavra tão grande. Mas, convenhamos, a simplicidade da gente vem toda de você. Eu penso demais, falo demais, sinto demais. Talvez eu demore mais três ou dez anos para aprender o básico sobre não exigir, não cobrar. A questão toda é que, mesmo que digam por aí que essa coisa de alma gêmea não exista, que amores da vida são tão somente cotidianos e findam após algumas primaveras, eu quero que a gente desabroche todo ano. Mesmo morrendo no inverno. Mesmo derretendo no calor do verão. Eu quero que a gente passe pelos outonos pra que as raízes se renovem e venham fortes e coloridas na nossa primavera. Eu quero que você seja o amor da minha vida. Aquele único. O que fica. O que não dói. O de contar pros netos nos almoços de domingo. Tenho essa ânsia de presente-futuro com você e me enrolo toda na hora de falar sobre isso. Porque tenho medo. Um medo enorme de meter os pés pelas mãos com essa profundidade toda. O recado dentro da aliança é quase um aviso para que as coisas permaneçam leves e, se não estiverem, algo errado está acontecendo. Porque o certo é isso, não é? Sermos a nossa paz, de segunda a segunda-feira. E somos. A saudade é que nos tortura e nos tira do prumo e eu não vejo a hora de podermos compartilhar de planos semanais, não só de finais de semana. Porque eu não sei mais nem tirar férias se não tem você. Eu não sei cozinhar sem lembrar das tuas comidas favoritas e eu não gosto mais de sair pra correr porque andar de skate com você durante a tarde toda causa o mesmo efeito e é infinitamente mais prazeroso. Começou a tocar James Morrison no rádio e eu já penso que são os astros conspirando pra que eu pegue a chave do carro e pegue a estrada pra te ver. James me lembra nossa primeira briga. Eu estava atrasada para voltar pra casa e havíamos brigado por deus sabe-se lá o quê. Mas meu coração doía. Arranquei com o carro e te deixei lá, na porta de casa, me olhando. Parei algumas esquinas depois enquanto ele cantava "you give me something". Fazíamos o quê, dois meses? Três? E você já me dava alguma coisa. Eu já me sentia pertencendo a algo bem maior do que eu. Voltei. Te abracei tão profundamente que pude sentir teu coração saindo pela boca e chorei. Desabei como até hoje faço nos teus braços. Tiramos um piano dos ombros naquela hora e eu pude passar mais alguns dias longe do teu sorriso. Você lembra? Houve outra vez, um tempo depois. Havíamos discutido, se não me engano, pela tua ausência de demonstrações de afeto. Naquela época eu ainda descobria teus olhos e não tinha ideia da profundidade de tudo que você sentia. Eu dirigia o mais rápido possível, pois o silêncio no carro era ensurdecedor. Liguei o rádio e começou a tocar "please don't stop the rain". Pensei: 'Deus, não é possível que eu vou dar o braço a torcer de novo'. E dei.  Parei o carro no meio de uma curva, freei no acostamento. Te fiz me beijar, contra a vontade. Te pedi perdão por duvidar. Te abracei por acreditar. Você me beijou de voltar na mesma hora. E, mais uma vez, voltamos pra casa. O mais engraçado foi a escolha dessa frase. Parece que prevíamos o quão sagradas seríamos, o quanto seríamos abençoadas dentro desse looping de simplicidade e amor. Na verdade, acho que o que nos encantou foi a ideia de não querermos estar em nenhum outro lugar senão juntas. Voltei à realidade, aos copos, aos pratos na pia, ainda coberta de saudades. Criamos um mundo tão nosso que não precisamos  mais de palavras para explicar algumas coisas. Eu nem tenho palavras para explicar algumas coisas. Porque eu já sinto por ti coisas que não devem nem ter nome. Quer saber? Tô chegando.

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