Traslado



Entrei na casa da Maria, baguncei toda a cozinha e resolvi ir para a sala. Maria disse-me que havia coisas de valor em sua sala, coisas que ela não costumava mexer, pois sua avó tinha muito apreço e quebrá-las seria um desastre. Baguncei toda a sala da Maria. Caminhei decidida para o quarto dela, empolgada com minha súbita coragem. No entanto, Maria colocou-se à minha frente e disse-me que aquele era o quarto dela e ai de mim se resolvesse entrar. Pois entrei. Entrei empurrando-a porta adentro, e ela, assustada, caiu no tapete. Olhei para Maria, que me olhou de volta com os olhos marejados d'água, quase como se implorasse que eu tivesse calma e não olhasse tudo assim tão fundo, tão demoradamente. Coitada de Maria! Sentei eu sua cama, e não pedi licença para pegar o violão. Toquei algumas músicas que ela havia me ensinado, e logo larguei de lado seu instrumento. Tirei os sapatos e joguei-os atrás da porta. Peguei o quadro da parede esquerda e coloquei na direita, assim sem perguntar, sem pedir consentimento. Maria, que nunca tinha visto tamanho disparate, colocou-se de pé e exigiu que eu saísse imediatamente daquele cômodo. Dei-lhe um sorriso gentil, e ainda ali, peguei seus livros. Espalhei pelo chão tudo o que lembrava de ter lido um dia, e embora boa parte de sua biblioteca pessoal continuasse nas prateleiras, Maria agarrou-me pelos braços e disse gritando que, se eu continuasse agindo daquela forma irracional, ela tomaria medidas drásticas. O linguajar de Maria nunca me assustou, por isso me desvencilhei de seus braços brancos e voltei meus olhos para a TV que continuava desligada. Uma música bastante conhecida começou a tocar: "Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora. Temo que não..." Maria não sabia se cantava ou se continuava me mandando ir embora. Era Chico, seu mentor. Desistiu da luta, e, exausta, cantou comigo. A música parou e Maria deitou em meu ombro, perguntando se eu via quão pesado é sê-la. Fiquei quieta. Os olhos dela então voltaram-se para os meus, e dessa vez era eu quem implorava para que ela não olhasse tudo assim tão fundo, tão demoradamente. Levantei e abri seu guarda-roupas, tirei todas as suas roupas íntimas para fora da gaveta, depois suas meia,s e por último seus cadarços. Contei exatamente 15 meias, 28 calcinhas e 13 cadarços. Expliquei-lhe que, talvez, fosse tempo de trocar algumas certezas de lugar. Que assim como ter 41 peças de roupa íntima era exagero, tanta prudência era desespero. Maria sorriu dramaticamente e curvou as costas aos meus anseios. Desferiu um soco em minhas costelas. Gritou que eu não passava de uma vândala que invadira seu quarto, sua vida, e resolvera dar pitaco na disposição das certezas. Com toda a força que me restava e completamente sem ar, segurei as mãos de Maria e a prendi em um abraço demorado. Será que ela não via que violência não levava a nada a não ser confundir nossas pernas, enlaçar nossos vestidos e pisotear de constâncias? Eu percebia seu desespero disfarçado de prudência. Maria era tão bonita! Naquele seus centímetros a mais, conseguia ser um barco furado e ainda navegar. No entanto, existia ainda uma pontinha de força naquele desejo covarde, e ela conseguiu soltar-se. Um silêncio cortante tomou conta do ambiente, e foi engolido pela música baixinha que agora tocava. Maria começou a chorar. Tão cansada que mal conseguia impedir o nariz de escorrer. Sentou escorada na cama e ouviu a voz baixinha cantar os versos finais da música, que era sua música. Eu nunca havia visto que no fundo daquela menina valentona, de riso fácil e olhos claros, existia uma Maria completamente apavorada com o peso de sê-la, e que bagunçá-la por inteiro, mexendo nas coisinhas tão bem organizadas de seu quarto era não só maldade, mas um egoísmo pútrido mascarado, e engajá-la em um projeto imbecil daqueles era a coisa mais egoísta que eu poderia ter incitado. Fiz questão de enxugar suas lágrimas antes de sair de seu quarto, de sua sala, de sua casa, e quando o fiz, senti vontade de reorganizar todas as coisas que, já postas noutro cômodo, faziam uma falta imensa. Já na esquina, daquela rua onde costumava caminhar por anos, senti um medo infundado de que outra pessoa entrasse em sua casa, em sua sala, em seu quarto. Só que dessa vez, para arrumar.

Comentários

Postagens mais visitadas