Como se de sufoco, no oco, eu desse voltas e não quisesse descer

A chuva era torrencial e eu mal podia enxergar a demarcação da estrada na minha frente. Havia uma cerração fechada, típica dessa época do ano, atravessando todo o caminho, como se uma nuvem houvesse baixado bem ali sobre meus olhos. O sol, canhoto, nem ousava dar o ar da graça, sendo consumido por um breu absoluto. Parecia noite enquanto dia, mas, ainda assim, não diminuí a aceleração. Na primeira curva, deslizei por sobre um lençol d'água e o carro titubeou; segurei firme no voltante e continuei. Nas retas, eu podia sentir o controle escapando das minhas mãos, porém, era como se algo me levasse, sozinho, para o meu destino, sem entraves ou pontes. Quando cheguei nos últimos pontos pecaminosos daquela estrada violenta, avistei alguns carros parados no acostamento, com a luz alerta ligada. Pensei: - "oras, foi bicho!" e me compadeci daquelas pessoas, perguntando se estava tudo bem ou se queriam que eu chamasse alguém. Fui ensinada assim desde pequena: estenda uma mão e te alcançarão o braço como apoio na subida. Toquei o barco (quase literalmente) e, devagar, através das nuvens percebia o contorno das árvores no caminho, como se fosse uma pintura impressionista, com todos os seus cantos obscuros e uma profundidade que não é mensurada em palavras. Acabei sendo tomada por uma felicidade absurda quando da última curva, sentindo o coração palpitar como se fosse a primeira vez que eu tomasse aquela estrada. Minhas mãos suavam e meu estômago dava voltas como um carrossel desgovernado ao som de nação zumbi, dá para acreditar? Como se de sufoco, no oco, eu desse voltas e não quisesse descer, adorando aquela marcha dançante em cima de um cavalo plastificado rosa com a crina azul. Eu mesma, que quando criança não me permitia sonhar acordada e tampouco dar voltas em carrosséis desgovernados, vivia um sonho dentro de uma pintura de Monet: o dia era cinza, mas tudo tinha cor. Eu via um céu azul imenso de nuvens de algodão levemente desenhadas, circundando um sol furta cor. O arco-íris começava a se apresentar atrás das campinas e pela primeira vez entendi o porquê chamarem de "serra mágica". Na verdade, magia é o que acontecia dentro daquele carro no momento em que cheguei na cidade, pois, a minha pintura tomava forma e agora tinha uma voz acentuada, aguda, de uma menina camponesa chegando devagar e enfeitando meu sonho. Ela tinha cabelos negros delineando um rosto pequeno, oval, me fazendo frear bruscamente quando do encontro com seus olhos. Ofereci-lhe carona, mas tampouco sabia para onde ia. Ainda assim, ela me acompanhou sorridente, explicando que a estrada teria chuva e cerração, porquanto a beleza está nos olhos de quem vê. - "cuidado!" disse ela, já que ainda não sabia que a prudência era meu maior defeito, me fazendo olhar para trás em cada esquina. Rodamos por dias, até encontrarmos o primeiro mês bater a nossa porta. Turbulento, trouxe a certeza: Não há direção certa, não há senso comum, apenas o que existe é o meu corpo sobre o dela em qualquer acostamento por aí, sem prudência alguma. Eu já deixava de me conhecer ali, velha de galocha, já que passei a perder a noção da hora e não mais me importava com isso. Intempéries e percalços marcaram a chegada do segundo, terceiro e quarto meses, já que a alma só se mostra forte frente à vida nos momentos de dor. Eu, que preferia sofrer sozinha, descobri um mundo inteiro dentro de um abraço, e não mais me vi perdida. Parei as contas quando passamos do décimo, e acabei vendo o tempo passar como um raio e nossos filhos crescendo no banco de trás de um corsa 94. Nossa menina tinha os seus olhos, ainda que do meu ventre. Lembro que tudo que ela pedia era para que nossos filhos tivessem os meus olhos e eu pensava comigo: os seus, de cigana oblíqua, são mais misteriosos que os meus. Nosso menino olhava o céu com a mesma intensidade que eu olhava quando tinha aquela idade. No vidro, ele desenhava pássaros que ninguém mais via, um universo rompendo a uniformidade do céu acinzentado do inverno. Eu, que era descrente de um Deus, passei a rezar por proteção, já que entendidos das leis diziam que minha família não existia. Ajoelhei-me e, prostrada frente ao meu Deus, pedi para que a estrada não tivesse fim. Percebi, então, que a estrada só tem fim quando se para de ver carrosséis, desenhar pássaros nos vidros e de acreditar que existe algo maior do que nós todos olhando através de nossos olhos, colorindo pinturas como Monet, levando a estrada onde ela, de fato, deveria chegar.





Meu ventre, sendo teu ventre.
Teus olhos, sendo meus.
Tua pele, por sobre a minha.
Minha estrada, levando aos caminhos teus.







um sonho dentro de um sonho, e eu ainda não sei se acordei (não sei se sonhava o meu sonho, ou se o sonho que eu sonhava era seu). Ontem, eu tive esse sonho e nele encontrava com você.

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