Surreal



Lembro daquele dia em que dormimos juntos pela primeira vez. Estávamos exaustos e o sono foi algo inconsciente. Lembro que volta e meia, eu abria o olho pra te ver dormindo e você estava de olhos abertos, me observando também. Eu estava entregue ali, corpo, alma, coração e barulhinhos que eu fazia quando estava cansada. Aqueles que te deixavam babando por mim, enquanto eu jogava meu corpo na tua cama e incessantemente grunhia até dormir. Você me disse certa vez que os amava. Eu tinha vergonha deles, aliás, eu sempre tive vergonha de parecer boba perto de ti. Lembro que em um lapso inconsciente sonhei contigo, e quando acordei você estava nos meus braços. Era uma manhã dessas, de nos perdermos em meia a correria do final de ano, mas no teu quarto tudo era manso. Quando você acordou, discutimos pela primeira vez. Você me perguntou por que eu não havia te acordado, disse que já era tarde e que gostaria de ter aproveitado de uma forma mais bonita o tempo comigo. Meu bem, teus olhos fechados são a coisa mais linda do mundo. Lá fora chovia destemperadamente, aquelas chuvinhas de molhar gente boba sem guarda chuvas, mas mesmo assim você me acompanhou até aquela antena perto da tua casa, onde eu pegava o ônibus. Éramos tão felizes com o pouco que tínhamos, e agora onde nos temos inteiros, o amor não nos coube mais. Ainda naquela manhã, antes de nos exaurirmos no cansaço mais compensatório de nossas vidas, você me falou dos seus medos. Recordo-me de dois: medo de não ser alguém na vida, e medo de tua banda favorita acabar antes de você poder os conhecer. Tão jovens, não? Eu me permitia entrar na tua juventude, e com isso me fazia mais tua. O meu medo eu não te falei, mas na minha prece à noite o revelei secretamente a um Deus que rege minha fé: Tinha medo de te perder. E amparada nesse medo, te protegi das sombras dentro de mim, te irradiando meu melhor. Antes ainda disso, você havia posto um filme, sempre escolhidos na pressa, mas com muito amor. Era algo entre "a troca" e "o vizinho", não me lembro exatamente. Lembro que você se aninhou no meu peito pela primeira vez. Deveria ser a segunda ou terceira vez que eu entrava em teu quarto, mas já fazia dali um abrigo seguro para as dores do mundo. Tua parede, que em tantas outras histórias se mistura, me chamou atenção desde o primeiro dia. Você só tinha pintado até onde seu braço alcançava, e eu achava isso uma graça. Uma legítima marca de você. Prometi que te ajudaria a pintá-la um dia, mas fica pra outra hora... Já são quase quatro. Aliás: Quatro. Esse era exatamente o tempo que tínhamos: Quatro horas, uma vez por semana. Às vezes não era suficiente, e teus professores se preocupavam com tua ausência. Eu enchia tua bola, e tinha a plena certeza de que eu era tudo que um dia na vida você almejara. O mais engraçado nisso tudo, é que jamais nos imaginamos nessa situação. Nem agora, nem quando começamos (Convenhamos que não esperávamos que começaríamos). Um pouco depois de você sair do banho, quando eu cheguei uma música tocava no rádio do carro, algo como "baby, nem sempre é so easy se viver" e eu tentei procurar na internet pra te mostrar, mas com a chuva que fazia, nada funciona direito em cidade pequena, nem a cabeça da gente... e acabou esquecido ali. Teu banho era um ritual sagrado antes de minha chegada. O cheiro da tua pele embriagava minhas tristezas e mandava o down embora. Teu cabelo molhado secava em minutos, e tinha um cheiro doce que volta e meia alguém na rua me faz lembrar. Quando eu me acomodava na tua poltrona você desconfiava,, sentava no meu colo e perguntava o que havia acontecido. Ás vezes era saudade acumulada de você, mesmo eu estando do seu lado. Com o passar do tempo, perdi as contas de quantas vezes deixei partes de mim espalhadas no teu quarto, e de cabeça baixa alguma horas depois, você ouvia meu choro, complacente. Choramos juntos tantas vezes, temendo por um presente-passado que nos destruiria, aí colocávamos uma música qualquer e você invadia meu peito escasso, me arrastando no balanço de teu tempo, nas tuas milhares de vidas, na calma do teu compasso. Uma vez, você me disse que se eu soltasse a corda, nós cairíamos, pois era o alicerce que te sustentava. hoje, olho pra trás e vejo que foi você que nos segurou o tempo todo, e que os barulhinhos, teu quarto e dias chuvosos por meses esquecidos, podem ser lembrados em uma simples madrugada insone. Por muito tempo obstruí caminhos que me levavam à tua rua. Evitei rosas, perfumes doces e pães de queijo. Doei teus discos, temi à Deus e fiz amigos novos. Contei pra eles nossa história bipartida, e lhes comentei que foi a solução encontrada para duas metades que foram se moldando da mesma forma, e sendo iguais, não se encaixavam mais. Busquei palavras bonitas para descrever o que eu sentia, e eles de coração na mão diziam que tudo se ajeitaria, e o melhor estaria por vir. Foram noites de bebedeira inconsequente, lugares desconhecidos e pessoas de ombros largos e ouvidos abertos. Nossa história correu por todas as vielas da cidade, certamente se debruçando de bar em bar a procura de um final palpável para uma estória tão bem contada. Acredito que ela tenha se perdido por aí, evaporado como a chuva que não cai mais nesse verão, ou se solidarizado como as flores que se doam à construção da casa das abelhas. Ou até se fechado como teu quarto , que contribuiu outrora para a iniciação de meu templo, do meu altar infinitamente particular. Realmente, tua história, que era minha história, sem se despedir partiu de mim e de ti, e o que ficou foram essas lembranças bonitas, que não deixam as outras pessoas desacreditarem do amor. Mas não se iludam, eu não entendo, Caio não entende, Carpinejar, Clarice, Tati... todos foram experimentos no jogo da vida, foram brinquedos do amor, e se algum dia descobrirem a fórmula propulsora para o início e fim da sinestesia magnífica da coisa toda, que mandem para teu quarto: Certamente ainda haverá uma parte minha lá, vestindo teu pijama, que vai querer saber.
Ah! A música era do Lulu Santos, não me recordo se você gostava dele, mas eu acho que não, já que criticava meu gosto exótico para música boa. Hoje ela tocou no rádio depois de uma madrugada terrivelmente sozinha, e te trouxe à minha órbita novamente. Não sei mais onde você está, na sua rua eu não passo mais há muito tempo. Não sei se casou, teve filhos, ou se namora com alguém que te dá livros e flores (que eu nunca te dei), mas saiba que eu continuo te irradiando o meu melhor. Que quando falam de amor, eu lembro de você, e que te transporto em som para onde eu estiver (o tempo todo).

Mais uma vez, me desculpe pelos erros de português, de concordância e o excesso de vírgulas (acompanhando a respiração inquieta), mas repito que amor não se lê duas vezes.


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