But you only know you love her when you let her go

Saíra aquele dia de casa com uma pressa inquietante. A cerração era ferrenha e fechada. Chovia aquela garoa de molhar bobo. Os carros se amontoavam nas estradas, as pessoas de passos apressados na calçada mal olhavam para os lados, e no rádio, tocava o velho Roberto de sempre. Fazia um frio de renguear cusco, como diriam os fronteiriços, mas o que a entorpecia eram as lembranças do verão que prometera ser o melhor de sua vida.


Começara em um emprego novo, aquele que sempre sonhara. Comprara um carro, passara de semestre da faculdade, tinha um namorado que a amava e amparava-a... roupa linda, a casa em ordem: O ano prometia ser o melhor de sua vida. Começara a dar aulinhas de inglês particulares, para aperfeiçoar a pronúncia já quase esquecida. Em horas vagas, visitava aqueles hipossuficientes carentes de atenção e afeto, senhores e senhoras que um dia foram chamados de pais, avôs e avós e agora abandonados sofrem de ausência... e junto de seu violão não só iluminava as manhãs de seu tão querido público,  como também fazia seu dia ficar colorido, dentre sorrisos de desconhecidos, aos quais ela a partir de então começou a chamar de família. 
Certo dia, no meio da correria matinal, haviam um papéis a serem entregues na portaria, e ela -a novata- servia basicamente à todas as utilidades a que serve uma estagiária. Em pouco tempo fizera amizade com o porteiro, os seguranças e o pessoal da limpeza. Sempre se dera melhor com o que a sociedade julga desabastados. Já com o pessoal de seu setor, os bom dias pareciam trincados, feridos, dolorosos, e agradecia quando tinha de descer. Lá estava ele. Completamente alheio do mundo ao redor, compenetrado em uma planilha de sabe-se lá o que. Ali de pé, exalava um cheiro de erva-doce com colônia pós-barba, o qual a fazia sentir estranhamente protegida e conhecida daquele homem. Seus olhos não se cruzaram, ele de cabeça baixa continuou seu trabalho, enquanto ela aproveitava o rabicho de olho para o observar: Nunca vira aquele desconhecido antes, mas estava decidida a descobrir quem ele era.
No mesmo dia, ao chegar em casa entrou em seu Facebook - moda da época, e lá estava ele: Em carne, osso e perfil. Bingo: Ele a descobrira primeiro. Não sabe-se como... talvez tenha passado a tarde toda procurando, talvez tenha chutado, talvez já a conhecesse de outras vidas, mas vamos pelo óbvio: Talvez tenha perguntado ao porteiro.
No dia seguinte, ele a chamara em um tipo de chat interno pedindo desculpas por tê-la adicionado, provavelmente em respeito ao seu namorado. Ela namorava a pouco tempo, mas sonhara com uma casa, cheia de cachorros, gatos e crianças. Pátio grande, sacada, varanda para o chimarrão. Livros por todos os lados, decoração vintage, tudo colorido, tudo feliz e tudo com o namorado, que sonhava junto. Não deu muita bola para o que o rapaz de cheiro de colônia pós-barba falou, e foi logo puxando assunto. Conversavam-se todos os dias, das sete da manhã às cinco da tarde. Falavam sobre a vida, os astros, o namoro dela, música e ao final da primeira semana trocaram seu primeiro livro: Rubem Alves por John Banville - Amor por derrota, espinhas por cabelos brancos. Eram quase isso: Vontade e espera. Mas ela namorava, e não pensava em interromper uma estrada tão bem planejada como fora, e por longos meses, não se falaram mais. 

No início do inverno, ela se desligara da empresa. Ele não se despediu formalmente, deixou apenas um recado dizendo que realmente sentiria saudades, e que ela ficaria com seu livro até a maré da vida os trazer de volta à praia. Aliás, não houve um sequer toque em todos os meses em que se cruzavam nos corredores da empresa. Ele a evitara após perceber seu distanciamento e ela nada o fazia para mudar a situação. Terminaram assim, em palavras não ditas, palavras malditas.
Passaram-se mais alguns longos meses e a relação já desgastada por lembranças daquele verão, acabara de vez por uma intempérie do destino. "Keep walking" pensava ela, olhando para o livro que o moço alto, de cabelos brancos esparsos nascendo a emprestara. Fora então para o seu método de distração e desligamento do mundo mais útil: A academia. Sempre teve problemas de peso e saúde, mas nada que uma boa malhação diária não resolvesse. E lá estava ele, novamente, vestindo seu melhor sorriso. Não disfarçavam a ansiedade contida nas palavras implícitas, e a voz trêmula nas poucas palavras trocadas. Era forte, como nunca sentira. Não sabia bem o que era, mas a partir daquele momento, todos os livros, contos, poemas e crônicas sobre amor fizeram sentido. Ela estava presa entre a dúvida e a vontade, não entendia aquele nobre rapaz com sua educação descomunal, gestos simples mas fortes, imponência de homem. Mal se olhavam. Quando havia a oportunidade de vê-la pelo reflexo do espelho ele o fazia, ela espichava o pescoço e os olhares se encontravam e desviavam, tudo sem querer. Ele fora embora, novamente sem ao menos se despedir e cada vez que o fazia a deixava em cacos, 'pedaços de um caderno manchado de vinho'... Se sentia despedaçada, por cada esperança falha vinda daquele estranho conhecido. Estrangeiro em seu país.

O tempo mais uma vez, deu o ar da graça e abençoou as férias que ela tirou para si. Nunca esteve tão de bem consigo mesma. Sem cobranças, esperas inalcançáveis ou ambições inabaláveis. Era uma pedra boiando no rio da vida, e iria para onde a correnteza a leva-se, afinal tanta espera serviu de que? Amadurecimento espiritual, diria agora. Conquanto em uma tarde fria de inverno de um ano qualquer, ele a procurara. Mas dessa vez foi diferente. Sentira que ela já não o pertencia e pela primeira vez ela sentiu o medo em suas palavras. "Love turns the whole thing around", pela enésima vez, palavras não ditas, palavras mal-ditas e o silêncio perturba. Talvez ele seja o espelho de tudo que ela busca para si. Talvez seja mais um cara, que gosta de brincar com as meninas de coração mole. Talvez seja mais um rito de passagem para o esquecimento de tudo que a fez mal.
Talvez seja só mais uma tarde fria de inverno, com carros amontoados e garoa fina. A única certeza, é de que não é mais espera, não é mais poesia, não é mais música. Se transformou em algo duro e frio, virou ausência. 



E a história termina assim, sem final. (Eu espero)

Comentários

Postagens mais visitadas