Se alguém perguntar por mim, diz que fui por aí



É como uma sensação de afogamento. Nada mais está no lugar, e é como se tudo tivesse sido inundado pela maré alta, rápida, desconhecida. Uma dor inquietante martela no peito, como se tivesse anulado os sentidos, além da própria vontade. Perdida em cantos de si, debruçada abaixo do Ipê envelhecido pelo tempo, misturava-se aos esqueletos das folhas, às flores mortas do chão que cobriam a paisagem com seu manto amarelado. Nem recôncavo, nem reconvexo. Olhos alheios a observam, mas não podem lhe ver - não lhe alcançam. Ela encontra-se alheia ao tempo, presa ao momento em que se perguntou onde morava o amor, já que não o encontrava mais dentro de si. No dia mais triste, da noite mais fria, do inverno mais rigoroso, saiu às ruas para tentar comprá-lo. Passou por tantos corpos, sorrisos e abraços que começara a sentir-se inteiramente amada. Dias sem esperanças, noites inteiras em busca daquilo que perdera sem ao menos ter. Copos com bebidas coloridas, músicas desconhecidas, pessoas estranhas que se tornaram sua nova família. Precisou se perder para enfim se encontrar. Porém, quando a noite acabava e no caminho de volta para casa olhava para o Ipê, se sentia como as flores mortas ao chão: Despedaçada. Em fragmentos sem encaixe. E fora assim por longos meses. No inverno, quando nada se enxergava nas ruas e a morte soprava seu ar mais inquietante, jogava-se às ruas. No verão, as pessoas que exalavam felicidade a incomodavam. Afinal, o que teria a vida de belo a ponto de lhe arrancar um sorriso? No outono, sentia-se senhora de si. Todo o colorido começara a se transformar em tons de marrom, preto e cinza e a sensação de que não era a única a doer fazia sentir-se irremediavelmente leve. Na primavera, exilava-se para não ver o belo renascer. O sol explodindo em cores, iluminando passagens e brindando o nascimento do novo. Era a estação que mais a incomodava. Passava meses sem sair de casa à base de café preto e restos de bolachas dos armários. Pensava que podia ser como o Ipê: Permanecer intacta através das estações. Os amigos, a nova família e as bebidas coloridas desintegravam-se em seus pensamentos. Tudo abstrato, superficial. Quem dera achar a saída da prisão que ela construíra para si. Presa em sua falta de argumentos, recitava versos soltos de Caio Fernando e manchava as cobertas de vinho acreditando estar no caminho certo para sair dali. Certa manhã, após sonhos inquietantes, abriu os olhos e como de praxe espiou a janela. O Ipê sobrevivente de todas as estações, que lhe cumprimentava todas as manhãs, não estava mais lá. Descera as escadas com pressa, abrira a porta e sentira os primeiros raios de sol lhe queimarem a pele. Raios esses que o grande Ipê não deixava passar por sobre seus galhos estrondosos e rígidos. Dizem que durante a madrugada, anjos nos visitam no sono. Sentindo a brisa leve da manhã, acreditara fielmente que um anjo trapalhão levara o Ipê para florescer em outra vizinhança. Vestira sua melhor roupa e fora procurar por toda a rua, em todas as casas alguma informação sobre o grande Ipê Amarelo ou sobre o anjo brincalhão. Comenta-se que a menina/mulher bateu em todas as portas verdes, azuis, vermelhas e pretas e nada os vizinhos souberam lhe dizer. Naquela noite, adormecera observando a lua da sua janela: Circunstância não permitida pela grandiosidade do Ipê, que encobria toda a visão da rua, e entendera que talvez, precisara perder o mais importante para revisitar suas prioridades. Os fatos não medem circunstâncias, e o modo como tudo acontece caminha junto ao inesperado, mas quando enxergamos por sobre os muros, temos o controle de nosso próprio tempo. A campainha toca. Chegara a esquecer que mudara o toque dela antes do Ipê ser plantado. Na porta um rapazinho, vestido com roupas de escoteiro, às quatro da manhã. -Desculpe atrapalhar seu sono, mas venho lhe trazer uma encomenda: Uma flor amarela, de um amigo que não conseguiu se despedir. (Há coisas que só quem passa pelo mês do cachorro louco consegue explicar. Bem-vindo setembro!).

- Pois diga a ele que entendi.

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